Contra a desinformação: cultura

Contra a desinformação: cultura

PERIFERIA E IMPEACHMENT

O QUE EU TENHO A VER COM ISSO?

 Reflexões a partir da roda de conversa realizada no Ponto de Cultura Periferia Invisível

Link da transmissão ao vivo de trecho da conversa: https://www.facebook.com/periferiainvisivel/videos/1028192487234902/

 

Sábado, 09 de abril de 2016.

Enquanto nos corredores do poder, nos gabinetes, câmaras, palácios e assembleias, grupos político-partidários aparentemente se digladiam, fornecendo conteúdo e contornos extensos para as narrativas espetaculares da mídia tradicional brasileira, as periferias buscam algum senso de organização, crítica e reflexão. Na fronteira entre Penha e Ermelino, zona leste da capital paulista, integrantes do Movimento Cultural Ermelino Matarazzo utilizam a sede do Ponto de Cultura Periferia Invisível como base para a resistência. A resistência não é, necessariamente, tomar partido numa guerra entre grupos de opressores cujos interesses momentaneamente deixaram de estar alinhados entre si, mas é, sim, buscar em meio ao caos da desinformação, conhecimento. Na era da superficialidade, profundidade. Frente a indiferença, afeto. Diante do ódio, arte (amor).

Foi nesse espírito, na busca pela aproximação das periferias, pela construção de narrativas periféricas, no sentido de encontrar pontos comuns, que chamamos o encontro. Presencial, importante, olho no olho, dispostos a trocar ideias, angústias, sentimentos e ações. O debate tinha por foco questões centrais, como: Quais são os impactos do caos político para as periferias? Como o processo de impeachment vem afetando as nossas vidas cotidianas? E quais são as consequências, de fato, caso ele se concretize? Estamos vivendo um golpe?

Periferia Confusa

Após a rodada de apresentações dos presentes (ativistas culturais, grafiteiros, jornalistas, analistas, skatistas, professores da rede pública e universitários, entre outros), a roda se debruçou sobre essas questões. Foram muitas considerações, relatos, sensações. Um dos casos ilustra bem o momento que vivemos: O evento Missias Plaza Music, uma ação plural que reúne músicos e artistas do bairro da Vila Cisper em praça pública, que historicamente sempre contou com o microfone aberto e acontece há mais de 1 ano na comunidade, se posicionou na internet com a hashtag #PeriferiasContraOGolpe. E isso fez com que muitos participantes frequentes do evento procurassem a organização para dizer que não iriam participar, outros se perguntando se agora o evento seria palanque de algum partido ou político específico. O que se sobressaiu foi a dúvida. Muitos não compreenderam o posicionamento adotado pela organização do evento, de se posicionar em favor da democracia – essa que sempre foi, aliás, um dos elementos centrais do próprio evento, que é livre para manifestações e apresentações de todos que quiserem participar de maneira democrática. Chama atenção o caso não para criticar ou condenar pessoas específicas, mas pelo momento de dúvida e aversão a política que vem se instaurando nas periferias. Para além dos grupos polarizados em um ou outro extremo da atual disputa política, existem também, nas periferias, outros dois grupos: um, organizado a partir dos movimentos sociais, culturais, periféricos, militâncias diversas, que fazem crítica ao governo do PT mas defendem o mandato da presidenta até o final ou, ainda, a realização de novas eleições gerais – mas nunca o impeachment da forma como vem sendo conduzido. Um outro grupo, porém, é aquele que simplesmente prefere não tomar conhecimento das questões que estão acontecendo, que prefere se manter distante, sem envolvimento com nada que possa causar um impacto cognitivo e/ou emocional muito grande em seus círculos sociais e que, por isso mesmo, acaba caindo numa aversão a “política”, de modo a pensar que não importa o resultado que saia dessa crise, pois em nada influirá na sua vida prática. Esse pensamento espalhado por algumas periferias se mostra perigoso e por isso a importância da criação de espaços de diálogo capazes de se aproximar do universo e da realidade concreta das periferias, para além das questões do espetáculo que a mídia insiste em criar todos os dias.

Um exemplo: a mobilização a favor do processo de impeachment da presidenta vem sendo financiada em muitas ações pela FIESP, que representa as Indústrias do Estado de São Paulo. Ora, quais os interesses estão por trás disso? Será que os donos das indústrias têm em mente os melhores interesses da população periférica? Provavelmente não. Isso significa, então, que a presidente e o governo como um todo tem esses interesses como prioridade? Também sabemos que não. Onde isso nos coloca?  Qual “lado” devemos tomar?

 

A ilusão criada pela mídia: falsa polarização

A polarização acentuada da política brasileira, no sentido do fortalecimento de dois grupos principais, a saber, um primeiro que defende a queda da presidente mesmo sem comprovação de crime de responsabilidade, rasgando a constituição e abrindo precedentes perigosos para a democracia institucional, e um segundo que faz a defesa cega do governo Dilma, a despeito dos repetidos golpes que essa gestão aplicou e aplica nos mais pobres e periféricos, como a recente criminalização dos movimentos sociais com a aprovação da lei antiterror; é uma narrativa fortemente construída e reforçada pela mídia tradicional, a fim de formar uma opinião pública rasa e não-esclarecida, permitindo a manipulação de grandes massas e o direcionamento político de um sentimento de indignação legítimo. Quando nos aprofundamos no debate, percebemos muitas nuances antes cobertas pelo espetáculo e isso nos faz enxergar que essa narrativa de polarização não passa de ilusão. Não precisamos tomar o lado de um ou de outro, não precisamos escolher qual dos partidos da situação ou da oposição vai nos oprimir com mais força pelos próximos anos. Ao contrário, nenhum deles está interessado, de fato, nas pautas e demandas das periferias e se queremos nos fazer ouvir e respeitar, isso se dará apenas com organização política e união nas bases.

Ora, se não existe nessa disputa institucional de poder pelo poder, sem projeto de país, nenhum representante legítimo das vontades das periferias, por que se posicionar? Em primeiro lugar, para nos defender. Como sempre, são as periferias as primeiras a sentir as marcas da crise instalada, as primeiras que sentem os cortes, a paralisação institucional, o descaso, a repressão. E não é possível que seja assim. Não podemos ter nossos direitos negados porque alguns aristocratas resolveram entrar em guerra. Não mais. Em segundo lugar, porque apesar de nenhum dos grupos em disputa representar de fato os interesses da população periférica, isso não significa que os dois terão políticas e ações iguais. Não terão. Um dos grupos em questão, como dissemos, está representando interesses muito fortes da elite econômica e industrial paulista, ligado a grupos conservadores que historicamente negam direitos civis e sociais. Interesses que são diametralmente opostos aqueles que as populações das periferias defendem. É um bloco que irá buscar não o progresso da sociedade como um todo, mas sim o retrocesso, a retirada de muitos benefícios conquistados com muita luta histórica. O pouco ou quase nada que ainda temos. De outro lado, o outro bloco em questão, governista, também anda de mãos dadas com setores muito conservadores e perigosos, ainda que de certa forma tenha sido capaz de engendrar avanços sociais importantes, que agora estão sob constante ameaça de cortes.

Ora, em face desses fatos, não é possível que saiamos de um governo ruim para a entrada de um pior ainda. Não é possível a saída de Dilma e do PT para a entrada de Temer e do PMDB. Isso é voltar no tempo e as periferias precisam avançar. Temos questões urgentes a serem resolvidas que não podem ficar à mercê de joguinhos políticos como esse.  É por essa razão que vemos muitos grupos organizados contra o golpe nas periferias. É preciso consolidar e expandir a democracia. Mas, ao tratar desse tema, encontramos uma primeira contradição.

 

A democracia não chegou nas periferias[1]: discussão sobre legalidade

Um ponto importante levantado durante o debate no Ponto de Cultura Periferia Invisível tratou sobre a fragilidade de um argumento muito utilizado pelos grupos que defendem a continuidade do mandato presidencial: a ilegalidade do processo, o desrespeito à Constituição e a defesa da democracia. Ora, utilizar-se desse argumento nas periferias é frágil porque a democracia nunca chegou de verdade nas periferias. Os direitos básicos garantidos pela Constituição não foram concretizados. Onde fica o respeito a legalidade e ao devido processo legal nas abordagens policias abusivas, que não raro resultam em verdadeiras execuções? Por que estes que agora desprendem tanta energia para defender “o devido processo legal” nunca o fizeram com tanto afinco para os quase 40% da população carcerária do país que está presa sem nunca ter sido julgada? São tantas as contradições possíveis de serem apontadas nesse discurso de legalidade. Na verdade, é provável que as periferias tenham um certo prazer em ver políticos e empresários sendo presos, ainda que sem o devido processo legal, pois que nas pontas são poucos os que tiveram direito a esse processo. Se a lei não pode ser cumprida para os de baixo, que são encarcerados em massa, muitas vezes de maneira injusta, abusiva e ilegal, que assim o seja para os de cima também; que, para eles também, as leis não valham, como nunca valeram para nós. Esse sentimento de revanchismo é possível de ser identificado na sociedade em geral e é canalizado pela mídia para perseguir seus inimigos políticos da vez, a já conhecida seletividade.

Mas, como pedir para as periferias que nunca viveram em uma democracia real, sólida, que nunca tiveram seus direitos mais básicos, como transporte, moradia, alimentação, garantidos pelo governo, e que nunca tiveram acesso a um sistema de justiça que funcione, de repente se coloquem a postos para defender a democracia, a legalidade, o processo, os direitos? Parece uma piada de mau gosto. O PT é vítima hoje de sua própria política de ascensão baseada unicamente no consumo, sem ter oferecido condições concretas a população para o aprofundamento da cidadania, da cultura e dos direitos sociais, elementos-chaves para uma sociedade avançada. Nesse sentido, é verdade quando dizem que cavou a própria cova. Ainda assim, é provável que a consolidação da democracia e da cidadania nas periferias demorarão ainda mais tempo para acontecer caso o país vivencie o golpe parlamentar que se desenha no momento atual. Estaremos muito mais longe das transformações necessárias do que estamos hoje.

[1] – Após a roda de conversa realizada no Periferia Invisível, o também Ponto de Cultura São Mateus em Movimento acaba de divulgar outro evento em formato de roda de conversa, intitulado: A democracia não chegou na periferia. Emprestei o título desse evento porque senti que veio bem a calhar, mas os apontamentos aqui realizados têm origem nas reflexões a partir da roda realizada no Periferia Invisível, sendo que a de São Mateus irá ocorrer apenas no dia 14 de maio.

 

A arte e a cultura como ferramentas lúdicas de provocação política

Dentro de todo esse contexto, uma importante reflexão levantada foi o papel dos artistas, ativistas e movimentos culturais das periferias nos bairros, nas bases, nas comunidades. A arte é, por definição, tirar as pessoas do lugar. Ampliar horizontes, apontar novos caminhos para velhas situações. Arte é movimento e precisamos, nesse momento mais do que nunca, ser capazes de provocar a crítica, de causar estranhamentos, de gerar reflexão, de propor alternativas. Assim como os movimentos de saraus foram capazes de ressignificar completamente a poesia e a literatura nas periferias, se apropriando de uma linguagem que historicamente pertenceu as elites, precisamos agora ser capazes de ressignificar a política nas periferias. É questão de estratégia. Não permitir que a aversão a política institucional se consolide como aversão a tudo que é político, não permitir que o pensamento fascista se fortaleça no ideário popular. É preciso urgentemente ressignificar e esse é o papel essencial da arte, da cultura, do lúdico e dos movimentos que tem essas ferramentas à sua disposição. Não iremos nos omitir.

 

Nóiz por nóiz: O que nos aproxima é maior do que o que nos separa

Enfim, essas foram algumas das reflexões e contribuições mais marcantes da roda de conversa Periferia e Impeachment: O que eu tenho a ver com isso?, realizada pelo Movimento Cultural Ermelino Matarazzo no Ponto de Cultura Periferia Invisível, em 09 de março de 2016.

Para encerrar, um último apontamento que emergiu dos diálogos travados no evento: A necessidade de criarmos a consciência de que nossos problemas e demandas coletivas são muito mais fortes e importantes do que as nossas diferenças individuais. Compartilhamos, enquanto periféricos, territórios, vivências, saberes, afetos, intuições. E cabe a nós, nesse momento, a tarefa de nos enxergarmos mais como semelhantes e menos como diferentes, a compreensão de que a mudança real não virá, nunca, de cima para baixo. Deixemos de lado as narrativas construídas a partir de pontos de vista que não são os nossos, deixemos de lado as disputas partidárias nas quais estão em jogo apenas o poder e nunca os nossos interesses. Não permitiremos que grupos econômicos, midiáticos e elites políticas pautem nossas demandas e silenciem as nossas vozes. Contra a desinformação, arte!

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