Crônica de uma noite silenciosa

Crônica de uma noite silenciosa

O barulho do ventilador. É isso que eu ouço e como pano de fundo um impensável silêncio. São Miguel está dormindo, calado. Não há pessoas na rua, não há nada além das biqueiras funcionando. Do meu quarto costumo ouvir aviões e brigas. Às vezes gritos indistintos, risadas, a televisão do quarto da mãe. Mas agora, só o silêncio sendo dilacerado pouco a pouco pelas pás plásticas, a hélice do ventilador já velho, quase um rangido.

Hoje de manhã falei sobre afeto, comunidade e política. Era terapia. Eu sempre falo de política, mas queria falar mais sobre afeto. E comunidade.

Aqui no bairro, esse território santo canonizado Miguel, esse lugar sagrado chamado por seus habitantes de Ururaí, o rio dos lagartos… Ainda não se ergueram tantos muros e grades como noutros cantos da cidade. Como noutros cantos da cidade…

Aqui a gente ainda deixa o portão aberto de vez em quando, aqui ainda tem muro baixo e gente na rua. Gente na rua, isso é definitivamente uma das minhas coisas preferidas de morar na periferia. Parece que quanto mais rico o bairro, maior o isolamento, a solidão; menor a convivência, o espaço comum, a comunidade. É como se toda e qualquer interação social fosse indesejada, como se o outro fosse um grande inconveniente que somos obrigados a aturar. Eu não gosto disso, não gosto de agir assim – e sei disso porque toda vez que assim ajo, me sinto mal.

São Paulo, esse outro santo no qual habito, esse ser maior, enorme, já me causa estranhamento. Mas é como se eu tivesse me acostumado a sentir-me estranho o tempo todo – no trem, metrô, ônibus. Nesses outros Santos e Santas, Bento, Ana, Cecília… Na República, Tiradentes…Quantos heróis!

Mas só aqui, só da Praça do Forró pra cá, eu me sinto familiarizado, me sinto acolhido, pertencente. Do lado de lá sou um estranho que se habituou ao exílio, necessário para a sobrevivência porque seu quintal já não é capaz de fornecer tudo que precisa. Mas é aqui, nesse território, nesses trajetos, nessas praças e ruas, casas e prédios, parques e capelas, bares e igrejas, na rua da minha casa, da casa dos meus avós e bisavôs, nesse pequeno espaço localizado, que encontro o real significado das palavras que falava essa manhã. Afeto. Comunidade. Tudo isso me remete, sempre, a esse pedaço de mundo tão cheio, tão vivo, tão repleto de sentidos e histórias. Esse tempo-espaço tão particular.

Recentemente visitei uma aldeia indígena. Talvez tudo isso que me aflora agora seja ainda reflexo dessa experiência. Do tratar com a terra como espaço sagrado. Da compreensão mais sutil de que nossa existência está entrelaçada a existência daquilo tudo que nos cerca. De um entendimento mais profundo das palavras. Raiz. Vínculo. Sagrado. Ururaí. Esse rio de lagartos, um rio que corre de dentro pra fora e de fora pra dentro. Um rio que modela e é modelado, que altera e é alterado, que transforma e é transformado. E onde me sinto, sempre, em casa.

Imagem em destaque: Capela de São Miguel Arcanjo, em São Miguel Paulista. [1921]
Aspecto anterior ao restauro, executado após o tombamento.
Fotógrafo: José Medina / SAN/DIM/DPH/SMC

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