Memórias Desmemoriadas de Uma Cidade Que Não Tem Lembrança

Eram umas vezes vilas, estações de ponto-final, fins de mundo fronteira com outros mundos no fim, terras de ninguém ou de muitos, algumas fábricas, vezes outras algumas lojas, sem bondes, com carroças e bicicletas, muitas praças, campos abertos, poucas avenidas, clima estável. Aquela garoinha endemoniada ditando o ritmo do samba paulistano. Mas nada disso importa… São memórias desmemoriadas de uma cidade que não tem lembrança.

Por ocasião do projeto Balaio de Circo e Música[1] fiz uma visita a Associação Museu Memória do Jaçanã[2] em busca de registros sobre a passagem de circos na região. Lá tive a oportunidade de conhecer o Sr. Sylvio Bittencurt, de 83 anos, fundador do museu e historiador por vocação “formado pela faculdade da vida”, como ele mesmo disse. Em um alojamento cedido pelo Metrô instalado em um terreno de propriedade do Estado, Sylvio conseguiu alojar as memórias do bairro, que vão de fotografias a objetos pessoais como, por exemplo, o chapéu de Adoniran Barbosa doa. Tambédo por sua esposam é possível encontrar matérias de jornal que retratam uma Jaçanã antiga e não muito pacata, com a passagem de grandes artistas por ali. O próprio Adoniran Barbosa, Inezita Barroso e Amácio Mazzaropi, entre outros, passaram pelo bairro por ocasião da Cinematógrafa Maristela, um estúdio cinematográfico local que produziu filmes como “Mulher de Verdade” e “Carnaval em Lá Maior”, ambos de sucesso em 1955.

O que nais me chamou atenção ali, e que me estimulou a refletir e escrever, foi a dedicação do Sr. Sylvio pelas memórias reunidas naquele espaço em 30 anos de museu improvisado, sem recursos e estrutura para armazenagem adequada do que são relíquias de uma cidade perdida. O museu do Jaçanã é uma das arcas que, frágeis, resistem em contar a história de uma cidade que pena, correndo atrás do tempo para fazer dinheiro, dinheiro borracha, que apaga lembranças, que nos deixa desmemoriados. Não conhecemos São Paulo. Não nos conhecemos.

Talvez essa seja uma das funções do capital, apagar as memórias. Milton Santos coloca a problemática de que a noção de centro e periferia não se aplica a um mundo globalizado onde as relações se tornam pasteurizadas e a cidade, como território em questão, tende a homogenizar-se em direção a um desenvolvimento econômico a qualquer custo, inclusive o custo-memória. Seria, portanto, a periferia o mundo inteiro[3]. Uma leitura equivocada poderia sugerir que o autor propõe a extinção destes conceitos, sendo essa uma visão ultrapassada e sem propósito, fora da “nova ordem mundial”. Porém, ao contrário, meu ponto de vista é de que Santos potencializa a ideia de que a cisão centro e periferia está ainda mais presente e complexificada nas relações geográficas, sociais e, sobretudo, econômicas. Se Marx falava de uma periferia que se define por estar a margem dos modos de produção ao mesmo tempo em que, paradoxalmente, é quem alimenta e consome a própria produção, o capital como máquina precisa ser eficiente em apagar as memórias deste todo periférico (pensado então como um território complexo relacional a partir de Santos) para que ele não se reconheça e, portanto, não se identifique como parte de uma mesma história.

São as memórias que nos trazem a tona uma humanidade consumida dia-a-dia pelo tempo da produção. São elas as capazes de abrir uma fenda no tempo-espaço e, quiçá, recuperar um pouco do tempo, perdido para o não perder tempo – produzir, produzir, produzir. No museu do Jaçanã existem objetos de valor incalculável, impossíveis de se atribuir valor monetário, cujo valor emocional varia para mim, para o Sr. Sylvio, para um estrangeiro fazendo turismo ou para o dono de uma grande construtora interessada em negócios na área.

No projeto Balaio de Circo e Música o Grupo doBalaio coloca em discussão o quanto o circo, como expressão cultural milenar, portanto também memória milenar, perde espaço em uma cidade que existe exclusivamente com e para o capital, não preservando seus registros passados, simplesmente porque não importam; muito pelo contrário, atrapalham. Por exemplo, porque preservar terrenos para uso exclusivo dos circos itinerantes se estes mesmos terrenos podem se tornar grandes e lucrativos empreendimentos? Porque preservar prédios antigos se ali pode ser uma área de um grande e lucrativo empreendimento empresarial? Porque subsidiar museus em bairros periféricos se a memória daquele povo pouco importa para o desenvolvimento total da cidade? Afinal, para quê uma cidade diversa e peculiar se quanto mais homogênea menores serão os conflitos e melhor a cidade se desenvolve economicamente em direção a uma ocupação maciça das classes dominantes. Este projeto de Brasil é apontado desde a colonização portuguesa. Se naquela ocasião a exploração dos recursos naturais e dos povos era o principal modelo centro-periferia[4]  hoje o controle social pela violência do Estado e por um conjunto de ações que imprimem um estilo de vida único (vida pela produção e consumo) causam uma sensação de desmemoriamento, de não pertencimento a este lugar, a este conjunto história-cultura.

Por isso para mim o Sr. Sylvio é um resistente político dos mais radicais em seus 83 anos. Ele, negro, é um Zumbi dos Palmares das memórias da cidade. Porque é fácil falar de uma São Paulo dos cafezais, dos imigrantes produtores de café, dos grandes industriais, do imperador sobre o córrego do Ipiranga numa das maiores armações políticas de nossa história. Mas não é fácil falar de personagens anônimos, não é fácil correr atrás do registro de histórias que são apagadas todos os dias nessa cidade desmemoriadora dos pequenos. Não é fácil porque assim não quer o poder. Contar histórias é um ato de resistência e ainda mais se a história contada é de uma periferia que pouco importa aos grandes centros de produção de riqueza.

Para encerrar, vale uma nota poética de Manoel de Barros, poeta das grandes pequenezas, que dedico ao Sr. Sylvio e ao Grupo doBalaio, que estão promovendo encontros onde as memórias sejam re-vividas como um ato de luta e resistência em suas respectivas periferias:

“Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas,

que puxa válvulas, que olha o relógio,

que compra pão às 6 horas da tarde,

que vai lá fora, que aponta lápis,

que vê a uva etc. etc.

Perdoai

Mas eu preciso ser Outros.

Eu penso renovar o homem usando borboletas.”

de “O livro Retrato do artista quando coisa” – Manoel de Barros

 

 

[1]     Projeto desenvolvido pelo Grupo doBalaio, contemplado pela modalidade 2 do Programa VAI – Programa de Valorização à Iniciativas Culturais – Prefeitura da Cidade de São Paulo.

[2]     http://www.museujacana.com.br/index.php

[3]     Milton Santos. Por uma outra globalização. São Paulo: Record, 2000

[4]     Voltando a Marx em sua comparação centro-metrópole colonizadora e periferia-colônia.

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