Afete-se! O corpo, para ser humano, precisa do outro

Passados sete dias de ter voltado à realidade dura e apressada das tarefas diárias da vida paulistana, me debruço sobre a memória do que vivi e do que ainda está pulsando da experiência de passar uma semana dentro de um hospital psiquiátrico.

Não, não fui internada. Não, não surtei, não me medicaram, não me amarraram em nenhuma camisa de força. Fui por vontade própria e bem consciente até o Engenho de Dentro, um bairro da zona norte do Rio de Janeiro, para participar de uma ocupação artística num hospício. Para quê? Resumo já neste início de texto: para exercitar o amor e o afeto incondicional. Para amar e ser amada.

O OcupaNise é um evento anual e a última edição ocorreu na primeira semana desse mês, de 1 a 7 de setembro, e juntou por volta de 400 pessoas de todo o Brasil e de alguns países como Chile, Colômbia, Argentina, México e Inglaterra. Artistas de diversas linguagens, arte educadores e profissionais da saúde se alojaram em dois andares do Hotel da Loucura, um dos prédios do grande complexo que constitui o Instituto Municipal Nise da Silveira. Dessa vez, além do espaço ser casa para o IV Congresso da Universidade Popular de Arte e Ciência (UPAC), também recebeu o XV Encontro da Rede Brasileira de Teatro de Rua (RBTR). Inspirada por Nise da Silveira, médica pioneira do movimento antimanicomial e da humanização do tratamento psiquiátrico no país, a proposta do evento é unir arte e ciência para se discutir arte pública e saúde pública, em ações culturais na convivência com os internos em tratamento.

O quarto onde fiquei, dividindo com outras 5 meninas de São Paulo, não havia janela. A metade da parede onde caberia uma vista para o lado de fora era vazada, ou seja, do teto até a metade da parede havia pequenos buracos redondos de onde, à noite, não cessava a entrada de vento frio. Quarto arejado que não tem janela significa o quê? Que não entra luz, não entra sol. Por isso também não há persianas ou qualquer tipo de proteção. Mas ali, éramos privilegiadas: no nosso quarto havia banheiro. Nele, uma pia, um vaso sanitário, um chuveiro “tipo bica” de onde saía água fria, um terço de parede vazada, nenhum espelho, nenhum armário. E este cenário diz muita coisa sobre a forma que os internos vivem e viveram durante tantos anos. As outras opções eram quartos sem banheiros, alguns com camas e num outro corredor, o que se chamava de baias, quartos abertos, onde provavelmente funcionavam como enfermarias.

Das pessoas que já eram amigos de outros lugares, alguns viraram amores profundos e outros viraram irmãos, como se a amizade tivesse pego um atalho para esse lugar de puro amor e confiança, onde nem alguns amigos bem antigos nunca chegaram. As trocas, as vivências, a mente frita de tanto ressignificar o trabalho, as relações, a própria existência e o peito transbordando de sentimentos inéditos, somados à atmosfera da loucura fez os mais próximos serem cúmplices dessa rica montanha-russa de emoção. Nem sempre feliz, nem sempre confortável, mas muito honestamente viva. Ganhei novos amigos de quem já sinto saudade. Mirian, Pelezinho, Edu, Ana Maria, Cesar, Jeane, Bruna, Juliana, Sandrinha, Luciana, Luciane, Cristiane, o querido e tão sábio seu Odacir, todos “clientes” – termo usado para se referir às pessoas que lá estão internadas. Pessoas que tomam medicamento e tremem a perna, ou perdem o controle da musculatura da boca e a fala fica enrolada, pessoas que têm o olhar vago ou uma expressão bem endurecida. “Mas o que tinha dentro era gente ainda”, diz umas das canções mais lindas que já ouvi e eu, com meus próprios olhos, pude ver. Eles poderiam ser eu ou um dos meus – foi o que pensei imediatamente.

No meio da semana, abriram-se em mim todas as portas e as janelas da espiritualidade. Um lugar com tanto histórico, com tantas histórias de abandono, de sofrimento, de solidão profunda, de dores e de surtos e mais surtos, certamente é casa para muitas almas sofredoras e toda a energia pesada ainda está presente, embora a arte cumpra seu papel de dispersá-la e dar lugar à alegria, ao afeto, ao diálogo, a tantas manifestações livres de regra. E foi nesse momento que meu pai entrou em cena, pegou minha mão e eu não consegui mais pensar em outra coisa senão nele, que há 10 anos morreu depressivo se negando a comer e beber, internado na ala psiquiátrica do Hospital do Servidor Público de São Paulo. Meu pai, um senhor de quase 1.80m de altura, com 70 anos de idade, morreu pesando 34 quilos. Tomando medicamento tarja preta e levando eletrochoque como estímulo para a vida. Estímulo para a vida. Para uma pessoa que está alucinando, que cruzou a fronteira da linha invisível que separa os que têm controle dos que a imaginação toma conta. Loucura é a violência com que se reprime o surto, não o surto. Loucura é a forma como se trata o dito louco. Não consigo pensar em outras vias de se estimular a vida senão o abraço, a música, dança, poesia, coisas que faz sorrir, imaginar, criar, sonhar. Pensei em quantos abraços deixei de dar, e que deixamos de dar diariamente. Em quantos Cartolas, que ele tanto gostava, deixei de cantar com ele que também gostava tanto da minha voz, e de quantas músicas deixamos de cantar sorrindo para quem amamos. Pensei no tempo que gastei fora, buscando o nada, o vazio, o efêmero, o que não se leva para lugar algum, mas que vamos, seguimos, como uma manada acéfala sob o efeito do desespero doente da engrenagem dessa vida egoísta e individualista que, se não tomarmos cuidado, nos engole por inteiro. Pensei em meu pai e me vesti com os olhos dele para me comunicar com aquelas pessoas. Para me comunicar não usando o melhor jeito que aprendi. Não a partir dos signos que o tempo me faz deduzir significados para cada expressão e palavra que o outro usa quando se relaciona comigo. Percebi que simplesmente estar do lado às vezes basta. Que isso já é um carinho. Que olhar e perceber o outro requer um tempo e que o tempo de cada um é singular.

Num piscar de olhos, me peguei em situação limítrofe, quase desesperando, quase perdendo o controle da dita normalidade. Recorri a uma conversa de porta fechada com Vitor Pordeus, médico psiquiatra e ator e ali ganhei um amigo confiável, doce e que já admiro tanto; na sequência quem cuidou de mim num reiki que me resgatou do fundo do mar e me fez sentir os pés no chão novamente foi Vera Dantas, xamã e mulher múltipla que chegou lá das terras cearenses, a quem dedico muito respeito e gratidão.

Cada dia parecia uma semana inteira. Houve plenárias sem fim sobre teatro de rua, saraus, distribuição de fanzines, paredes ganhando frases, desenhos, graffitis. Roda de cura, corredor de carinho, festa, cenopoesias, cortejos pelas ruas do bairro e na Cinelândia. Gargalhadas, lágrimas, abraços, afetos inúmeros e muita ciranda. Teve comoção ao se falar da morte da atriz Lua Barbosa, vítima da aberração que é a prática de violência legitimada da Polícia Militar e muito cansaço e desesperança na fala de alguns paulistanos sobre a criminalização dos movimentos sociais. Teve muita cor nordestina enchendo de ritmos alegres os inspirados poemas que foram recitados. Lançamento do cd do Pelezinho, estreia do longa metragem “Hotel da Loucura – Gênese”. Trocas de experiência, de olhares, de amores. Teve lindas canções de Edu Viola e momentos catárticos para dar e vender. José Pacheco encerrou com chave de ouro o evento, dizendo que se enganam os que pensam que os excluídos estão somente dentro dos manicômios, mas que eles também estão dentro das escolas, das comunidades, estão nas praças e na nossa vizinhança, e que temos que ser solidários. Que eles, talvez, sejamos nós, no passado ou no futuro. E finalizou dizendo um poema de Antônio Gedeão que termina assim “(…) Eles não sabem, nem sonham, que o sonho comanda a vida, que sempre que um homem sonha o mundo pula e avança como bola colorida entre as mãos de uma criança.”

Não levei comigo a obrigação de registrar nada. Fotógrafa que sou, nem a câmera carreguei na mochila. Quis somente estar. Sentir. Viver. Dançar cada ciranda. Cada sorriso, cada silêncio. O celular apagou por três dias e só quando tive que mandar um email de trabalho pedi ajuda para resetá-lo e, então, mais na pesquisa de uma linguagem que ainda não tinha experimentado, gravei alguns trechos pequenos de intervenções – ainda que essa fosse o som de passarinhos cantando e algum interno expondo seu silêncio profundo na composição da imagem. O caderninho de anotações que levei foi útil somente no primeiro dia, pois esqueci debaixo das árvores onde adorei me deitar nas tardes ou tarde da noite. Recebi de volta dias depois, e sem nenhuma folha faltando, pelas mãos de uma cliente, exatamente aquela que tinham apontado para que eu tomasse cuidado “fica esperta com as suas coisas, tudo que ela pega não devolve mais”. Vendo hoje o pouco material de imagem colhido durante o evento, observo, curiosamente, uma estética (produzida talvez de forma inconsciente) próxima a um universo etéreo, de sonho. Talvez o mesmo sonho que o professor Pacheco escolheu para encerrar sua participação mais que especial. E provavelmente o mesmo sonho que já me abastece a alma e que certamente há de guiar meus próximos passos nessa militância por sermos (eu, você e nossos vizinhos – dos mais próximos aos mais distantes) mais humanos e estarmos juntos. Colaborar e não competir. Vitor Pordeus disse algumas vezes que na sociedade doente em que vivemos a tragédia há de vir, no entanto, temos como aprender uns com os outros para tentar evitá-la.

Viver o OcupaNise é um ato de coragem e fé. Mais que isso. É um privilégio de quem se permite ir até o fundo do mar de si mesmo para acessar o outro. O outro que também somos nós. É o desejo profundo de ver um sonho coletivo sendo construído em direção a uma sociedade mais amorosa, menos excludente. Ouvi num dos dias alguém dizer que saúde é diálogo e monólogo é doença. E a doença não se cura individualmente, a cura só se dá no coletivo. “Cuidar do outro é cuidar de mim”, já diz a música que mais se ouviu pelos corredores nessa semana de luz e amor. Avante, OcupaNise! Nos encontramos novamente no ano que vem e, até lá, te carregarei dentro do peito como sendo um norte do que realmente faz diferença e importa para mim, para nós, para todos nós.

5 comentários sobre “Afete-se! O corpo, para ser humano, precisa do outro

  1. Bravo Tatit..a insanidade mental pra mim e um dos maiores males da humanidade,na maioria das vezes são excluídos e por fim definham como aconteceu com seu pai,e este trabalho da OcupaNise vai de frente com todo este universo o qual você caiu mergulhou afundou,ufa..que bom que você voltou..rsrs..lindo texto Tatit..Plac,plac,plac…

  2. Me tocou muito Tatit, texturas e sonoros…gostaria muito de estar ali vivenciando o que você descreveu. E como é bom te ler novamente e sentir tanta vontade de tomar um café contigo.

  3. Seu texto é bonito, demostrou bem o que sentiu ao estar ali. Mas é muito fácil estar no seu lugar, querer viver aquilo, entender e mergulhar nesse mundo. Mas com toda certeza esteve em um mundo e experiência somente sua.
    Normalmente quem realmente se encontra Ali as coisas costumam ser bastante diferentes.
    Você com certeza ficou pressa 1 semana, mas com certeza onde de você ficou como desse, encontrou atividades para fazer onde deu se não houve para dizer que tem alguma coisa.
    Conheci bem como e estar a viver em um hospital psiquiatrico, que Onde de ilhado e pesquisando parecia ser onde barulhento melhor hospital para ser internar alguém . Mas chegando lá e ficando bem mais de 1 semana , nunca em nenhum momento passei por uma terapia ou se quer um psiquiatra a não ser um dia antes de ir embora para receber alta.
    Fui atacada por mulheres ali dentro, tínhamos que fazer amizade com as melhores para nos defendermos juntas. Enquanto umas dormiam, as outras ficavam acordadas, tínhamos que nos revezar. banho? Sempre alguma ficava na porta vigiando. Tudo poderia acontecer ali.
    Com certeza nenhum enfermeiro se esfregou com uma paciente na sua frente, é comum isso em troca de ao menos um maço de cigarro. ou por sexo mesmo.
    Presenciei ali dentro reclamações de pacientes e simplesmente era mais fácil dizer que elas estavam em surto para os familiares e imaginando coisas. Fora da realidade. E tocavam o famoso remédio que deixavam elas babando sem conseguir sem quer fazer qualquer movimento.
    Aprendo ali deixavam no com as próprias pacientes que você tinha que ficar quieta se quisesse sair dali logo e bem.
    E quanto mais ficamos é difícil não surrar. Se vc quase saiu da realidade, imagine pra quem realmente vive isso.
    . A maioria dos lugares não somos tratados como gente. Somos abandonados. Mal tratados e abusados.
    Muito fácil dizer qualquer coisa para a família, qualquer família acreditaria nos médicos. Não se dando conta e realmente não indo atrás para saber o que realmente acontece ali dentro. Mesmo pq isso jamais seria mostrado para os outros.

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