Sobre o debate acerca da peça d’ Os Fofos Encenam: “Não é sobre arte e sociedade? As pessoas só estão discutindo sociedade”

“pergunte sempre a cada ideia:

a quem serves?”

Bertolt Brecht

Situando historicamente, no dia 12 de maio de 2015 seria realizada no Itaú Cultural a apresentação da peça teatral A mulher do trem, d’Os Fofos Encenam. A partir de um movimento em redes sociais acusando a peça de blackface e/ou racismo, a apresentação foi cancelada, sendo realizado em seu lugar um debate sobre a temática.

Deste debate quero deixar algumas breves considerações.

É realmente difícil fazer muitas pessoas brancas entenderem seus lugares de privilégios. E se estes lugares estão em estado de ameaça, ameaça da “onda negra” como bem ironiza o músico, antes de acadêmico, Salloma Salomão, estes chorarão, rolarão, segurarão os ossos com todas as forças, afinal “não tenho nada contra negros, muito pelo contrário, sempre tive amigos de coração negros”, como teve a branquice de comentar em uma discussão sobre o ocorrido, um diretor teatral, que se apresenta dizendo que tem meeeeeestraaadddooo na uuussspppp, pesquisador de máscaras da Commedia dell’Arte, que acha um erro o cancelamento da peça para abertura do debate. Afinal, queremos arte, queremos estética, isso só pode ser censura, seria necessário ter visto a peça antes, não dá para discutir material artístico sem tê-lo apreciado previamente.

Claro. É necessária a experiência da arte, a fruição sensível, o envolvimento estético com a criação laboriosa de artistas que se dedicaram por horas e horas de pesquisa, muitas vezes fechados em suas redomas de vidro da criação artística para, então, podermos acenar pontos de vista a partir do resultado simbólico.

Assim como deve ser necessário que estas pessoas antes fiquem duas horas ou mais no transporte público por dia para ir trabalhar na limpeza de algum lugar via empresa terceirizada, deve ser necessário que estas pessoas ouçam gritos xingando seus cabelos ao caminharem de boa nas ruas só porque esta não é a estética padrão, que estas pessoas percam outras que amam só porque foi derrubada de uma viatura policial e esta a arrastou metros distante.

Só assim compreenderiam?

Dever ser necessária a vivência na pele-prática para se colocar diante da dor dos outros, como intitula Susan Sontag?

E dá-lhe espírito hermenêutico.

Não é preciso vivenciar tais situações para saber o quanto reflexos da barbárie elas são. Certo que vivenciadas elas ganham uma carga de experiência mais efetiva, no entanto a miséria de suas configurações já as expõem no lugar de ‘onde não queremos estar’.

E se antes as escolhas dos ‘lugares do não’ não se davam por conta de práticas perversas de autoridade sem possibilidades de localizações, hoje ainda sobra margem para um certo posicionamento da negação. Deste ‘não’ embasado, deste ‘não’ consonante com pontos de vistas de outras pessoas que correm na mesma barca.

O que difere então a arte enquanto trabalho isolado de uma construção de reflexo sócio-identitário?

O que especificamente é permissivo à arte que a desvincula de um compromisso com seu tempo e suas questões?

Aponto aqui ser esta discussão estética antiga e perpassa vários momentos tanto de significâncias simbólicas quanto passagens históricas definidoras enquanto repensar de uma sociedade. Claro que isto não é nenhuma novidade. Também é necessário pontuar que o que temos de apresentação documental histórica está pautada como sendo a do ponto de vista dos vencedores, como nos apresenta Walter Benjamin em seus conceitos de história. Cabe a nós, portanto, indagar o que se propõe à arte e a quem ela está a serviço, não nos desvinculando de um projeto maior – portanto, a arte enquanto objeto de atuação do campo simbólico – de construção societária.

E para não deixar de apresentar a dialética, o realismo socialista já bem mostrou os perigos de um parecer subestimador de uma compreensão artística para as massas. Maiakóvski que o diga.

Com relação à questão da peça e sua personagem empregada doméstica encenada por um ator de pele clara com o rosto pintado de preto, se sua representação incomoda, mesmo que posta de lado toda sua dramaturgia, não a queremos lá, é lá onde não queremos nos ver representada/os, deste modo não.

E aqui estamos falando de representatividade. De referências.

Do modo de quem assiste à peça e qual a imagem que lhe preenche a mente e fica posta como indicativo de conduta. A mesma cobrança de imagens na construção do imaginário de crianças negras que não se veem representadas em programas infantis, desenhos animados, novelas, etc. Esta carga simbólica de apresentação sendo determinante para a construção das identidades.

Então vamos sim boicotar a peça, assim não pode mais ocorrer. E para tanto debater é preciso.

Aí você chega no debate e tem lá um vídeo sobre um projeto do Itaú Cultural, o diretor do instituto faz uma fala apontando aquela noite como “histórica”, além de apresentar uma proposta que estão construindo sobre o tema para o mês de novembro (óbvio que negra/os só figuram neste mês), o debate tem como título “Arte e sociedade: a representação do negro”, algumas pessoas na fila perguntam se é lá o local de distribuição de senha para a “palestra”, distribuem capas de chuva gratuitas (mentira, pois você já pagou com seus impostos para que o tal instituto cultural de um banco siga em atividade) e a instituição financeira/cultural sai como bacana no rolê. Mais dialético impossível.

E lá vem alguém, já no acalorado debate em abertura de microfone para as pessoas sentadas na plateia, dizer que a “palestra” (de novo este termo) é sobre Arte e Sociedade e as pessoas só discutem sociedade. Ora, paciência seja dada. Dói discutir o racismo né? Dói ver pretas e pretos (e mais ainda dói ver a prática de seus empoderamentos) ocupando um espaço privilegiado classe média localizado na Avenida Paulista – espaço de arteeee – para, mááá quêêê, discutir justo racismo. Dói ver este espaço ocupado para discutir “sociedade”. Cancelar um espetáculo tchiatral  então… – que absurdo! –

Só que não. Não estamos aqui para debater no campo da “sociedade”, estamos aqui para debater no campo do simbólico, da semiótica.

Pois bem, se é no campo do estético que vocês querem debater, pena que não puderam – vocês – vivenciar em sua construção imagética em infância e juventude (e só exclui o período adulto porque parece existir mais voluntariedade entre assistir ou não assistir – como se este tal de livre-arbítrio existisse) a ausência da representatividade das suas/dos seus nos meios de comunicação. E quando esta/es mesma/os aparecem, o lugar já está dado: é a pedinte banguela, é a negra gostosa que jamais será apresentada para a família, é o suspeito rondando, é a empregada da casa. Signos já automaticamente identificadas, haja posta sua massiva representação, seu constructo no imaginário social (mas não era arte? Porque estamos falando de sociedade?)

Sim, estamos falando de construções simbólicas. De um imaginário erguido a partir da recepção das imagens – estas, as mesmas que nos bombardeiam o tempo todo reforçando estereótipos, formas de conduta, opressões, naturalizações. E como sinaliza Augusto Boal, já estamos vivendo plenamente a Terceira Guerra Mundial, a guerra das imagens, a disputa pelo simbólico.

Mas ainda assim querem que discutamos estética. Querem, brancos, se defenderem – afinal, estou perdendo meu privilégio de primeiro assistir à peça para depois sentar num café com meus amigos, brancos, e falarmos sobre, – Puxa, mas estes negros não estão exagerando? a peça, à tradição das personagens da Commedia dell’Arte, trazem os criados como os mais sagazes, os mais capazes de descortinar os padrões burgueses de seus senhores etecétera etecétera blá blá blá, blá blá blá… Para depois irem para casa e a vida continua.

A mesma continuidade com as consequências do uso destas estéticas de poder.

Estéticas-escolhas de atuação de um viver no mundo, não desvinculado do real, portanto.

Estéticas práxicas de um cotidiano de quem a vivencia na pele.

O mesmo cotidiano que mata baseado em referenciais simbólicos.

São vidas que morte.

Vidas, pois, transformadas em arte.

Arte, pois, posto que são vidas.

Processo simbiótico entre os campos artísticos e sociais.

Um e outro amalgados para desespero dos belartistas l’art pour l’art.

Mas este tempo acabou.

E que vocês continuem não encontrando formas de atuação, pois irão, sim, perder estes espaços de privilégios cada vez mais.

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