Pra onde eu vou? Vou pro Sarau!

Contrariando as estatísticas, o início do século XXI nas periferias de São Paulo está marcado por um dos movimentos literários mais importantes da cultura brasileira: os saraus e a literatura marginal-periférica.

Talvez você – ainda – não entenda, mas com certeza já deve ter ouvido falar do sarau. Deve ter visto algo em algum programa de TV, jornal, revista. Já deve ter visto algum menino ou menina preocupado em decorar um texto para apresentar, algum jovem escrevendo uma nova música, ou mesmo senhores e senhoras que pegam seus antigos cadernos de poemas e histórias, dobrados e amassados no fundo das gavetas de sua memórias recitando e falando em voz alta para estranhos, nos bares da vida por aí. E sendo entusiasticamente aplaudido por isso. Não estranhe se já tiver visto ou ouvido falar de algo parecido. Isto é o sarau.

Para quem já teve interesse em buscar o significado da palavra sarau, vai encontrar algumas definições semelhantes nos dicionários. Entre as mais comuns, a de ser uma “reunião festiva, geralmente noturna, para ouvir música, conversar e dançar; reunião noturna de finalidade literária”, entre outras. Definições tradicionais, como é a própria origem da palavra sarau, na qual encontramos as primeiras citações ainda no século XVI, de derivações de palavras vindas do francês soirée, do latim seratinus e do galego serao e, finalmente, do catalão sarau.

No Brasil, uma das primeiras citações e definições para o termo aparece na obra “A Moreninha”, de Joaquim Manuel de Macedo, de 1844, na qual podemos identificar que o sarau é uma espécie de festa noturna privada, elitista, marcada por apresentações artísticas, discussões de negócios e assuntos políticos. Em meados do século XX, no salão da Villa Kyrial, considerados para muitos o berço do nascimento da semana de 1922, aconteceram saraus que reuniram importantes figuras intelectuais brasileiras, como Lasar Segall, Guilherme de Almeida, Oswald de Andrade e Mario de Andrade. Isso sem falar de vários outros saraus que aconteceram nas próprias quebradas de São Paulo, referências ao trabalho de Akira Yamasaki, em São Miguel Paulista, na década de 1980 e ao Binho e sua Noite da Vela, em meados de 1990, no Campo Limpo.

Ou seja, quando falamos em sarau é necessário entender que não estamos falando de algo novo, inédito. Não inventamos a roda. A grande sacada é ter colocado a mesma pra girar, com uma nova forma, força e pungência.

Trocar os litros por livros. A mesma garganta que engole cachaça e cerveja, devolvendo poesia. No lugar em que eles esperavam que a gente fosse se acabar, uma nova cultura nasceu. Melhor dizendo, renasceu. Ganhou músculos, ganhou penas. Acabou com a pena de si mesmo, abriu o seu braço e o viu transformado em asas. E voou, levando autoestima e cultura para a quebrada.

A antropóloga Érica Peçanha, a primeira a debruçar sobre o tema no seu livro “Vozes Marginais na Literatura”, foi também uma das primeiras a observar dois marcos importantes para o movimento a partir de 2001, que são o lançamento dos três números da revista Caros Amigos/Literatura Marginal, organizados por Ferréz; e o Sarau da Cooperifa, organizado por Marco Pezão e Sérgio Vaz. O primeiro, por marcar, registrar textualmente, toda uma produção literária feita por poetas e escritores em situação de marginalidade (social, política, editorial), e que a partir dali iria apenas desenvolver e crescer; o segundo, por apresentar e estabelecer uma nova maneira de fazer saraus. E essa mistura – forma e conteúdo – se mostrou extremamente explosiva.

Assim como mostramos que falar em saraus não é nenhuma novidade, a novidade surgiu na maneira, na forma de organizá-la, falar em autores marginais, ou que tratam de temas urbanos de certa forma também não o é. Podemos citar Lima Barreto, Carolina Maria de Jesus, João Antônio, Solano Trindade, Plínio Marcos, Austregésilo Carrano, vários deles (e dela) considerados “marginais”. Aliás, é importante que não esqueçamos deles. O grande diferencial para a literatura marginal-periférica, a partir de 2001, é que, se antes este autores apareciam em momentos pontuais, de maneira isolada, é que aqui temos um movimento, um rio caudaloso que traz consigo uma produção literária crescente e efervescente, seja em número de autores (Ferréz, Sérgio Vaz, Alessandro Buzo, Binho, Sacolinha, Dinha, Allan da Rosa, Fuzzil, Michel Yakini, Elizandra Souza, apenas para ficar em alguns), seja em volume de publicações.

Estes são os grandes diferencias dos saraus das periferias: a quebra na forma e a produção literária à qual estão associados. Para entender: antes os saraus eram festas privadas, hoje são reuniões públicas. Antes eram atividades, na maior parte das vezes associadas à elite; hoje são populares. Antes eram espaços para demarcar uma posição social (classe), hoje são espaços de inclusão sociocultural. Antes eram eventos pontuais, hoje é um movimento permanente, que realizam encontros semanais, quinzenais ou mensais. Isto para ficar em apenas algumas diferenças. Além de  terem estabelecido uma forma de organizar as atividades e apresentações: microfone aberto, período de duração, silêncio nas apresentações, barulho nas celebrações. A poesia como arte, retirada do inacessível Olimpo, servida nas mesas dos bares com “escondidinho” ou o “pior pastel de São Paulo”. Cada sarau é único, extremamente particular, com seus ritos, apresentações. Mas juntos possuem uma maneira de se organizar, mobilizar; uma tendência que é peculiar e tem cara de quebrada, de século XXI.

Procure saber: neste exato momento uma revolução cultural e nada silenciosa acontece em diversos bares, escolas, praças; nos poucos centros culturais e bibliotecas existentes nas periferias. Um movimento que se justifica – e se contrapõe – ao histórico descaso do Estado, a ausência e deficiência das políticas públicas voltadas para a cultura; pelos vergonhosos índices educacionais que ainda hoje mostram que apenas 1 em cada 4 brasileiros sabem ler e escrever de maneira satisfatória (não são analfabetos funcionais) – sim, isso é Brasil, 2014, pentacampeão. Este artigo é, antes de tudo, um convite: visite um sarau da periferia. Venha conhecer de perto o que são e como funcionam estas verdadeiras bibliotecas sonoras da poesia.

Um comentário em “Pra onde eu vou? Vou pro Sarau!

  1. Daora Rodrigo… Essa divisão que a Erica Peçanha faz é bem interessante mesmo, estou fazendo meu TCC sobre os Saraus e ia partir dela…

    Mas achei um recorte mais atual (bastante parecido, aliás) e mais a ver com a ideia que eu estou propondo. Não sei se você já chegou a ver, mas tá disponível online:
    http://www.each.usp.br/revistaec/?q=revista/1/marcos-fundamentais-da-literatura-perif%C3%A9rica-em-s%C3%A3o-paulo

    Essa é a 1ª edição da Revista da Pós-Graduação de Estudos Culturais da EACH (Usp Leste). Coisas muito bacanas lá sobre Literatura Periférica e outras manifestações culturais populares recentes!

    Abraço!

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