Inquisição, lesbiandade e tititi

outubro/2015

Brasil, 1591. Mais especificamente Nordeste. Aporta em terras brasileiras, pela primeira vez, o Santo Ofício diretamente de Portugal com a finalidade de julgar os “excessos” cometidos por aqui. Na figura de Heitor Furtado Mendonça, visitador responsável pelos julgamentos da Inquisição, o quesito “sexualidade” é sempre de interesse mor das questões eclesiásticas.

Sendo assim, claro que as práticas que fogem à naturalidade da Igreja, em se considerar um casal formado por homem e mulher, são todas passíveis de condenação do tribunal instaurado.

Nesta primeira visita, de um processo que durariam longos quatro anos (1591-1595), foram apontadas vinte e nove mulheres como tendo em algum momento praticado relações sexuais com outras mulheres. Segundo os autos da Inquisição Portuguesa, esta foi a vez com maiores processos de homossexualidade feminina. De acordo com Vainfas, “nas décadas seguintes nenhuma mulher seria processado por sodomia no Reino ou na Colônia”. Concessão? Compreensão das vidas e liberdades individuais? Conforme segue indicando Vainfas, os inquisidores tornariam esta uma questão desimportante por considerar que “as mulheres eram incapazes de praticá-lo por razões anatômicas”.

Expressões como “ajuntando seus vasos dianteiros” e perguntas do tipo se “as praticantes utilizavam algum instrumento penetrante” mostram evidentemente a incompreensão de possibilidades na relação sexual entre mulheres. Além de expressar uma valorização do falo enquanto regente de toda prática sexual.

Isso século XVI. Vejamos agora nosso atual século XXI.

Dia desses vejo na banca de jornal uma dessas revistas baratas que contém resumo de novelas, vidas de pessoas da mídia, milagres de emagrecimento e outras inutilidades da sociedade do espetáculo. Por erro não anotei nome da revista, editora, nada e agora não consigo encontrá-la para indicá-la, então caso alguém saiba, por gentileza, comente.

Na capa estava Thammy Miranda e a seguinte frase: Thammy é virgem. Ela nunca transou com homens.

Não é desconhecido que Thammy há tempos assume-se enquanto lésbica e atualmente passa por processo de transexualização masculina. Também não é desconhecido que a pessoa em questão não deve ser adepta do celibato (se for, me desculpem o equívoco), portanto já teve relações sexuais.

Por que esta especulação midiática em formato revista, além de afirmar uma suposta “virgindade de Thammy”, ainda reforça a sentença com o seguinte argumento: “Ela nunca transou com homens”?

O que estamos diferenciando em termos dos mesmos apontamentos registrados nos autos da Inquisição – encontrados em arquivos na Torre do Tombo, em Portugal – dos dias atuais, passados cinco séculos de muita história?

Analisemos palavra por palavra da frase de modo a apontarmos algumas graves problemáticas:

  1. Ela: pronome pessoal feminino. Thamy atualmente passa por processo de transexualização masculina, portanto É um homem. Utilizar o pronome feminino é reforçar qual lugar acham que ela deve estar e mostrar à todas e todos que ela deve continuar sendo mulher;
  2. Nunca: advérbio. No caso, como o verbo seguinte está no passado, reforça a negativa da ação;
  3. Transou: verbo transitivo, tempo passado. Ato sexual, não especificando quem com quem;
  4. Com: preposição. Define relações de algo/alguém com outrem. Aqui complementa o verbo dando-lhe personificação;
  5. Homens: substantivo masculino plural: No caso, define a relação apontada e caracteriza os sujeitos: homem e mulher (ela).

Nesta frase, tem-se, cinco séculos após, a continuidade de uma hipervalorização do falo. A supremacia patriarcal do sujeito que carrega um pênis como dominante. O falocentrismo como chave no jogo de poder social. A heteronormatividade que define não virgindade e relação sexual como a prática entre um homem e uma mulher. A desqualificação de relações homossexuais entre mulheres como sendo nulas e irrelevantes – quando não, inexistentes.

O ato sexual ainda determinado pela penetração do órgão masculino, independente do sujeito passivo. Ou, por acaso, se na capa da revista estivesse uma pessoa bio-homem homossexual passando por um processo de transexualização feminina, ela anunciaria “Homem tal é virgem. Ele nunca transou com mulheres”?

Temos, pois, três questões: machismo, lesbofobia e transfobia. As mesmas julgadas pelas visitas do Santo Ofício em processos inquisitoriais Idade Média.

Se naquele período as condenações iam desde chibatadas em público até o desterro, quais são, decorrentes de publicações como estas revistas, as consequências de um pensamento influenciador do povo? As mesmas que podemos pensar como decorrentes de discursos eufóricos/violentos de Datenas, Rezendes e companhia, de falas de ódio de Malafaias, Cunhas e Felicianos?

A princípio uma revista “inocente”, bobinha, de fofocas, breve e barata. Mas no fundo, reforçadora dos moralismos, preconceitos e influenciadora de pensamentos. Ou seja, fruto primário para consequências mais pesadas.

E já sabemos que estas consequências, em termos de violência e violação de direitos, não diferem em muito das praticadas em tempos medievais.

Ao final, os resultados são os mesmos e as estatísticas de homicídios, agressões e etecetera seguem crescendo, neste país em que uma pessoa homossexual é assassinada a cada 28 horas.

Citação: Vainfas, Ronaldo. Homoerotismo Feminino e o Santo Ofício. In. Del Priore, Mary (org.). História das Mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, ; Editora Unesp, 1997

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