Profetas da periferia

Me perguntaram o que eu achava da redução da maioridade penal.

Eu nem gosto de tocar nesse assunto, sabe? Não faz bem pra minha saúde falar sobre a prisão no geral, muito menos a prisão de crianças.

Certo dia numa conversa de bar, um poeta me disse “O que a polícia faz é o contrário do que a gente faz”. Esse pensamento pra mim foi bastante intenso. Vejo cada vez mais saraus, cada vez mais slams, cada vez mais arte e cultura da periferia salvando jovens, salvando vidas. Salvam das drogas, salvam do crime, salvam da polícia, salvam do estado, é verdade. Mas, principalmente, salvam de nós mesmos. Do monstro que é criado dentro de nós, da indiferença que o sistema cultiva em nossos corações e da alienação que a mídia planta em nossas mentes.

Eu não consigo descrever o sentimento que é poder colar num Slam ou num Sarau em São Miguel, bairro onde nasci e cresci, e ver ali, as pessoas do próprio bairro, vizinhos, construindo coisas tão grandiosas. Descrever o sentimento de chegar nos eventos musicais em praças e ver artistas tão incríveis, que moram ali, que vivem ali. É sentimento demais, aprendizado demais.

Acredito que os maiores talentos que eu tive o prazer de conhecer não estão na televisão ou nos grandes circuitos de arte. Eles e elas estão ali, bem na minha frente. Sabe o que é poder trocar ideia direto com os artistas que você admira? Mais ainda, poder trabalhar junto com alguns deles, fazer parte da trajetória? Sensação indescritível.

Então, quando me perguntam o que eu acho da redução da maioridade penal, eu simplesmente não consigo responder. Na minha realidade, na minha experiência, não existe medida mais absurda do que essa, e é impensável para mim que alguém realmente acredite que isso resolverá alguma coisa – qualquer coisa. Por isso, não posso levar a sério uma pergunta dessas. Tantos jovens que eu conheço, de 16 anos ou menos, que me ensinaram tanta coisa por meio de letras, poesias, músicas… Jovens que se enquadram exatamente no perfil a quem se destinam as cadeias: pretos, pobres, da periferia. E humanos, talvez os humanos mais humanos com os quais me deparei.

Paro. Respiro. Penso. Lembro de vários poetas nos saraus e vejo que as expressões e falas* que usam cada vez mais se tornam reais.

O ladrão de infância e a mente no escuro da criança, que vira mão de obra por poucos reais.

Os maestros formados, diplomados, bem vestidos e os oprimidos que nunca calaram-se, mas também não foram ouvidos.

A ironia da cidade cinza e a coragem de quem não quer se apegar ao chão.

As mães asseando o chão com suas lágrimas de pureza e as crianças se tornando adultos em miniatura…

O poeta fala o que vê, o que sente. Mas às vezes parece que os poetas da periferia não fazem bem poesia, mas profecias.

Me contento em saber, que, se isso for verdade, existe um futuro, mesmo que ainda distante, que será muito, mas muito melhor do que esse hoje e do que esse próximo.

É isso que nos motiva e dá força para não parar de lutar.

 

* Expressões retiradas de poemas de Andrio Candido, Lucas Afonso, Bê O, Ni Brisant, Rafael Carnevalli  e Victor Rodrigues.

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